sábado, novembro 23, 2013

Para alguns isto poderá parecer mistificação, mas é uma afirmação honesta das minhas convicções atuais. É preciso não esquecer, é claro, que há uma inevitável discrepância entre a verdade em questão e o que a pessoa pensa, até mesmo de si: mas também é preciso não esquecer que existe uma igual discrepância ente o julgamento de outrem e essa mesma verdade. Entre subjetivo e objetivo não há uma diferença vital. Tudo é ilusório e mais ou menos transparente. Todos os fenômenos, inclusive o homem e o que pensa de si, não são senão um alfabeto móvel e mutável. Não há fatos concretos a que se apegar. Assim, ao escrever, mesmo que as minhas distorções e deformações sejam deliberadas, não estão necessariamente mais distantes da verdade das coisas. A pessoa pode ser absolutamente verdadeira e sincera ainda que seja reconhecidamente a mais abominável mentirosa. A ficção e a invenção são o próprio tecido da vida. A verdade não é de modo algum afetada pelas violentas perturbações do espírito.

Assim, quaisquer efeitos que eu possa obter com recursos técnicos, eles nunca resultam apenas da técnica, mas do registro muito preciso da agulha do meu sismógrafo das experiências tumultuadas, múltiplas, misteriosas e incompreensíveis por que passei e que, no processo de escrever, são revividas de forma diferente, talvez ainda mais tumultuada, mais misteriosa, mais incompreensível. O chamado cerne do fato concreto, que constitui o ponto de partida assim como de renovação, está profundamente engastado em mim: não me seria possível perdê-lo, alterá-lo, disfarçá-lo, por mais que tentasse. E, no entanto, É alterado, do mesmo modo que a face do mundo é alterada, a cada momento que respiramos. Para registrá-lo, então, é preciso dar uma dupla ilusão – uma de suspensão e uma de fluxo. É esse artifício dual, por assim dizer, que dá a ilusão de falsidade: é esta mentira, essa máscara metamórfica, fugaz, que é da própria essência da arte. A pessoa se ancora no fluxo: adota a máscara mentirosa a fim de revelar a verdade.


Henry Miller, Ensaio Sobre a Arte de Escrever.
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fica o que não se escreve.