quarta-feira, maio 31, 2017

2.
já quase nascia o sol, eramos os únicos do recinto, sentados, fumando e nos escutando. Saímos com  7 cervejas na mão e dois energéticos. Dirigimos por uma São Paulo muito mais amigável que recebia um sábado de manhã sem chuva ou frio. Eu queria que você dirigisse pra sempre. Cantava um verso específico repetidamente de 'there's a light that never goes out' em minha cabeça, enquanto mexia no seu cabelo. Consciente do clichê ali moldado, estava entupida de uma ebriedade absurdamente sóbria. A noite acabou. Você iria me deixar na minha casa e ir embora. Não deixei. Você não tinha bem para onde voltar. Não ainda. Lembra dessa época? Nova casa, novo estúdio. Tudo era pó. Nem sequer os cachorros ainda estavam lá. Te abriguei. Até ai, vale dizer, valia ainda a regra do 'quero mas não devo'. Eu já havia desistido do meu plano maléfico de te provocar por prazer. Te provocava porque te queria. Você tomou um banho e deitou comigo como já pertencesse. Era a primeira vez que você me tocava. Não nos beijamos por muito tempo. Era o calor da sua boca contra minha, o imaginário que precede o momento. Me senti dentro do capítulo 7 de Cortázar
"Toco tu boca, con un dedo toco el borde de tu boca..." 
Capitulo este que te mostrei tempos depois, nós dois deitados na rede. Você se divertia com meu medo. Eu tinha certeza que rebentaria. Não rebentou. Você a balançava e me fazia cócegas. Eu tenho pavor de cócegas.  Descobri seu ponto fraco. O umbigo fundo. Via o pavor nos seus olhos acompanhado de um sorriso masoquista. Implorava que não, mas sorria porque gostava que eu jogasse seu jogo. Adorava ser o influenciador. Ama minha idade e adora estar no pedestal. 'é coisa de artista, é coisa de artista', você já confessou desde o princípio quando falava das outras. 
Outras que, inclusive, pelo que sei da sua boca, já admiro. Mulheres fortes, talentosas e que por Deus, viveram ao seu lado. Não inveja, mas admiração. Ou talvez, confesso, um pouco de inveja. Veja bem, experiências passadas me privaram da chance de um dia viver isso contigo. Mas ai vem a tricky part. Elas te enfrentaram, engoliram seus demônios e choraram. Deus, como elas devem ter chorado. Ao ponto que em nossa primeira crise, no meu primeiro choro, você também desabou, mas desabou em ódio. Sentia em suas palavras uma vontade de se desculpar, mesmo sendo por algo que você nem entendia bem. Ao mesmo tempo, era cansaço. Nossa primeira briga e eu sentia em você a exaustão de quem já viveu aquilo demais e já não podia. Essa exaustão cheia de verdades absoluta e certezas sobre a vida. Nossas certezas, tão tolas e tão diferentes. 
Para mim, já era o fim. Das promessas de virada de ano, prometi-me duas coisas: conhecer a cidade que chamava de casa há três anos e fugir sempre que possível. Não dava pra buscar abrigo na primeira. Via você em todo lugar. São Paulo, cara, São Paulo. Essa cidade que você me apresentava e se expandia a cada dia, de repente parecia completamente igual e repetitiva. O caos de vocês era tão compartilhado que todo horizonte que eu olhava tinha suas cores e seus traços. A cidade era sua e eu existia entre rabiscos. Num ato de falsa liberdade, busquei uma companhia amiga e desci a serra, em busca de areia e água salgada. Regido por uma deusa, o mar, mesmo que sujo e nem tão belo, sempre sabe mais. Questionei a ela tudo que me afogava. Porque era sempre tão frustrante? Porque não conseguia encontrar aquela mutualidade que há tanto eu buscava? Só me respondeu em ondas. 
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fica o que não se escreve.