terça-feira, novembro 21, 2006

"ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. seus sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone estava sempre meticulosamente limpo. tinha uma mania com os dentes que era de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu quase parava de rir só para ficar olhando. trazia a escova no bolso e mais a fralda para limpar o saxofone, achou num táxi uma dúzia de fraldas johnson e desde então passou a usá-las para todos os fins: era o lenço, a toalha de rosto, o guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. foi também a bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivéssemos um filho. tinha paixão por tanta coisa...
a primeira vez que nos amamos foi na praia. o céu palpitava de estrelas e fazia calor. então fomos rolando e rindo até as primeiras ondas que ferviam na areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. preocupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. colheu a água com as mãos em concha e despejou na minha cabeça: "eu te batizo, Luisiana, em nome do padre, do filho e do espírito santo. amém." pensei que ele estivesse brincando mas nunca o ví tão grave. "agora você se chama Luisiana", disse me beijando a face. perguntei-lhe se acreditava em deus. "tenho paixão por deus", sussurou deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar perdido no céu: "o que mais me deixa perplexo é um céu assim como esse." quando nos levantamos correu até uma duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar com ela. aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino e começou a improvisar bem baixinho, formando fervilhar das ondas uma melodia terna e quente. os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta que grande! olha esta agora mais redonda... ah, estourou... se você me ama é capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar mais alto que puder até que venha a polícia? eu perguntei. ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em direção á duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a tocar a plenos pulmões.
minha companheira de curso de dança casou-se com o baterista de um conjunto que tocava em uma boate, houve festa. foi lá que o conheci. em meio da maior algazarra do mundo á mão da noiva se trancou no quarto chorando, "veja em que meio minha filha foi cair! só vagabundos, só cafajestes!..." deitei-a na camam e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. pulei gente e sentei-me a cama. a mulher chorava, chorava até que os poucos o choro foi esmorecendo e de repente parou. eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muitos quietas, ouvindo a música de um moço que eu ainda não tinha visto. ele estava sendo na penumbra, tocando saxofone. a melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão eloqüente que fiquei imersa num sortilégio. nunca tinha ouvido nada parecido, nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. tudo o que tinha querido dizer á mulher e não conseguira, eler dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. tinha deus, ela não acreditava em deus? - perguntava o saxofone. e tinha a infância, aqueles sons brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!... a mulher parou de chorar e agora eu que chorava. em redor, os casais ouviam num rumor fevoroso e suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras, porque a melodia também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao vento e ao sol. "

lygia fagundes telles
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fica o que não se escreve.